A Ilha dos Escravos (Francisco Manso e Ana Costa)
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Story Line
O filme decorre em Cabo Verde (na ilha de Santiago), durante a primeira metade do século 19, com breves segmentos de extensão a Lisboa e Viena de Áustria e flashbacks, centrados na ilha de Santo Antão e em Salvador, na Baía, pelos fins do século 18.
O levantamento de tropas, na Cidade da Praia, instigado por oficiais desterrados para o arquipélago, em consequência da derrota dos partidários do infante D. Miguel, na guerra civil portuguesa, é o núcleo histórico do filme. Os rebeldes, contrariando as suas próprias convicções anti-liberais, tentaram aliciar para o seu campo a população escrava, à falta de outros meios humanos que lhes corporizem os desígnios.
Conspiração político-militar por um lado, insurreição de escravos por outro, ambas associadas, mas só transitoriamente convergentes, e a mistura não podia ser senão explosiva. Se o núcleo histórico do filme é abertamente conflituoso, o núcleo dramático não o é menos, com uma tecitura melodramática, que nos remete, em pleno, para o período romântico, em que a acção decorre.
Sinopse
O escravo João alimenta um amor platónico e inconsolável pela sua senhora, a bela mestiça clara Maria, de quem recebeu instrução. Provavelmente franzino demais para o trabalho nas plantações, foi escolhido para jardineiro e hortelão, actividades em que se revelou exímio. Assim está perto da casa onde vive Maria, o que lhe consente privar com ela. Dotado de grande inteligência, acompanha as lições da ama e aprende a ler. O pai de Maria é um próspero fazendeiro viúvo, também mestiço, antigo sargento do exército colonial português de nome Cláudio, amo complacente para com os seus escravos.
Chega, vindo de Portugal, um misterioso emissário. Albano Lopes intitula-se comerciante, mas traz a missão de provocar o levantamento da oficialidade, com fortes inclinações anti-liberais, em favor do banido infante D. Miguel. Esta personagem logo se fascina pela beleza de Maria e tenta, sem êxito, seduzi-la.
Mas o comportamento do emissário misterioso é equívoco. Tão equívoco como o nome que esconde outro, esse só revelado nos desfechos. Insinuante e de falas mansas, qual Iago do drama “Otelo”, alcança, graças aos bons serviços do Mestre Tesoura, negro liberto, nascido no Brasil, comerciante instalado na Ilha com ascendente na população da ilha, a simpatia de alguns escravos, mas não do escravo João, que vê nele um potencial rival, embora o pobre não alimente esperanças de vir a consumar a sua paixão secreta.
Só a escrava Luísa, por sua vez apaixonada por João, sabe do recalcado amor que consome o seu inconsolável amado. A situação quase triangular torna-se quadrangular, quando Albano Lopes mais se aproxima da família do sargento Cláudio e lhe faz crer que quer casar com a filha: o escravo João ama Maria, a escrava Luísa ama o escravo João e o sinistro-simpático Albano Lopes faz namoro a Maria, que hesita …
Mas a conspiração para tomar conta do regimento e do governo do arquipélago está em marcha, liderada pelo misterioso Albano Lopes, que consegue atrair para a sua causa alguns escravos e ex-escravos, entre os quais o Mestre Tesoura. Em criança, em Salvador da Baía, este tinha assistido à execução do pai, que se revoltara contra a repressão exercida pelo poder colonial sobre a população negra brasileira, episódio que jamais esqueceria e que o marcou para sempre, e que veremos em flashback.
Com o eclodir da conspiração, ocorre, a imbricar a trama, um acontecimento aparentemente imprevisto. De um barco negreiro, a caminho das Américas, foge um grupo de escravos, recém capturados nas costas da Guiné. Entre eles, com a postura de um príncipe tribal, Enok, que se interna nas montanhas e passa a chefiar um aguerrido grupo de escravos fujões.
A prisão da velha Júlia, ao tentar proteger alguns fugitivos, vai precipitar os acontecimentos. Júlia, escrava liberta, congrega em si as tradições ancestrais africanas, transplantadas para o arquipélago e misturadas com crenças e ritualismos da religião católica. Vítima, enquanto jovem e escrava, da repressão de um cruel fazendeiro de Santo Antão, perdeu amado e filho, num drama remoto que o entrecho esclarecerá em flashback. Dele trouxe uma cicatriz horrenda que lhe arrepanha o rosto. É temerosamente respeitada como matriarca e feiticeira.
Enok, pelo seu desafrontamento instintivamente guerreiro e pré-colonial, será uma espécie de contraponto à aculturação do escravo João que é confrontado com o facto de ser filho de Júlia e será empurrado para liderar o movimento da sua libertação.
Ambos, cada um por sua banda, espontaneamente Enok, dedutivamente João, vão pôr em causa o pronunciamento e a aliança espúria entre escravos iludidos e brancos ilusores.
Dilacerado entre a fidelidade aos da sua raça e o sentimento de gratidão para com os seus senhores, onde predomina a paixão impossível por Maria, sua jovem senhora, a quem deve a promoção cultural que o distingue dos outros escravos, João será uma figura dramaticamente complexa e contraditória. Escravo também pela amarra dos sentimentos, João encarna, na negritude, o torturado herói romântico, adversário de tudo e de todos, e por todos incompreendido.
A morte de Cláudio, numa noite de amor, vai perturbar os planos de Albano. Maria, cedendo a um desejo do falecido pai, liberta todos os escravos da fazenda. Estes marcham para a cidade, liderados por João, para exigirem do governador a libertação de Júlia.
Assustados, os brancos da Ilha fecham-se na igreja onde ficam sequestrados. Albano aproveita o acontecimento para substituir os comandos militares e libertar Júlia. Mas os escravos, satisfeitos, retiram-se para as fazendas, deixando o terreno ao adversário. Excedido pelos excessos verificados, o cônsul francês, que negociara facilidades portuárias com Albano em troca de apoio político, volta com a palavra atrás e vai colaborar na libertação dos sequestrados da igreja. Os oficiais portugueses sentem-se humilhados e retomam o controle da situação. Os conspiradores são perseguidos, e capturados.
João acabará por sacrificar a própria vida, ao salvar Maria, no desfecho, em que defronta o rival, Albano. Na fuga, este refugia-se na fazenda de Maria e tenta convencê-la a acompanhá-lo. Perante a recusa dela, Albano tenta possuí-la. João intervém para defender Maria. Mas outros fazendeiros brancos, que vêm proteger Maria, chegam a tempo de ver um escravo a atacar um branco e disparam sobre ele. À beira da morte, João recebe de Maria o primeiro e último beijo nos lábios …
O conspirador Albano Lopes foge, entretanto, vindo a ser trespassado por um arpão baleeiro, empunhado pelo vingador Enok, que se salvará com um punhado de ex escravos, no veleiro que Albano pretendia utilizar na fuga, de proa apontada à costa de África, retorno e partida dos seus destinos.
A revolta é sufocada e os principais revoltosos miguelistas executados no pátio do forte. Mestre Tesoura tem igual sorte, mas diante do pelotão de execução clama a sua inconformação, lançando a voz para os tempos que hão-de vir. Evidencia-se que o Mestre Tesoura pretendia, subterraneamente, aproveitar-se das confrontações e das lutas entre os brancos para redimir os da sua raça.
A velha Júlia e muitos escravos fugidos, acolhidos na caverna onde ela vive, acabarão esmagados por uma avalanche, quando bombardeados pela artilharia do exército regular, em operação de “pacificação”.
Um enviado do Ministério da Marinha português, chegado em missão de inquérito na ilha, no decorrer das confrontações, será o representante da reposição da legalidade, agora profundamente influenciada pelos sangrentos acontecimentos que se viveram na Ilha.